Archive for the ‘ Estéticas ’ Category

Um pequeno salmista andando pelo tempo

Foto por Lucas Motta

Foto por Lucas Motta

Há um cineasta russo que disse em seu livro que a música é a moldagem filosófica do tempo. No caso das canções de Thiago Grulha, dever-se-ia estender o conceito para o campo da Fé, da Teologia, da Doutrina e Vida Cristã. Meus passos no tempo parece ser o retrato do que vive, pensa e faz um jovem salmista da nossa geração, anotando tudo em nossa memória através do seu canto. É com os olhos no retrovisor das próprias vivências que Thiago evoca as imagens e experiências que canta no disco com uma voz singela e precisa, sem muitos rodeios. A principal marca do disco é a presença de canções, na mais bela acepção da palavra, aquela que nem meu sempre útil Caldas Aulete traz no verbete:

canção (can.ção) sf. 1 Qualquer composição musical (popular ou erudita) para ser cantada. 2 Poesia lírica.

O problema do verbete é a palavra “qualquer”. Correto do ponto de vista da língua, mas não do ponto de vista de uma minha Filosofia da Arte, a partir da qual defendo que casamentos especiais entre poesia e sons merecem ser chamados de canções. Grulha é cancionista! Tem aquelas fagulhas criativas que depois de lapidadas viram poemas, e muita vez, se encaixam perfeitamente numa idéia sonora; ou ainda, desafiando o próprio compositor, já nascem as duas coisas, texto e música juntas, presenteadas por Deus num ato de plena graça.

Musicalmente o CD tem uma textura pra lá de agradável, com pelo menos 2 singles que estourariam fácil em circuito comercial. Às vezes tenho a impressão de que está chegando a hora de artistas cristãos como Grulha, Hélvio Sodré, Banda Resgate entre outros experimentar lançar seus materiais em circuitos maiores do que apenas as rádios evangélicas, mas isto não é assunto para agora… Meus passos no tempo remete a um Brit-Rock corajoso e Pop, com uma coisa de Coldplay aveludado por um leve sotaque Folk pela presença de fortes violões de aço como o de Cacau Santos na lindíssima canção Não é o fim, que bem me lembro ter história, e uma história que ainda vai deixar o Thiago Grulha com a voz embargada por muitas vezes. As escolhas de timbres e arranjos são muito corajosas e acredito que poucos produtores além de Paulo César Baruk ousariam investir em tamanha economia como na da que ouvimos na faixa de abertura e sua repetição como bonus-track.

Fiquei mais uma vez impressionado com a voz poderosa, plástica e expressiva de Leila Francielli num dueto lindíssimo com Thiago. Coisa linda de composição, de arranjo, interpretação e tudo mais! Até a mix me impressionou pelo bom gosto no preenchimento dos espaços e o belo “palco sonoro” montado pelas mãos de Eduardo Garcia. O equilíbrio da masterização contribui para a escuta dos detalhes, dos efeitos. Tudo na medida para a construção de um belo álbum! Os samples da faixa Tempo para amar são outra boa surpresa. Além de bem sequenciados, ornam o belo arranjo de Thiago Cutrim.

Outro destaque é a interpretação de Grulha para a já clássica Choro acompanhado num arranjo que transborda bom gosto e sensibilidade do Leandro Rodrigues.

Um espetáculo de simplicidade e captação de uma idéia, de um conceito é o projeto gráfico do CD. Fez com que mais uma vez eu sentisse saudades do formato dos LPs. Imagino a capa e as fotos de Lucas Motta em dimensões mais avantajadas… Seria algo pra se pensar paras as próximas empreitadas da Salluz Productions: uma edição limitada para os que ainda sabem e gostam de colocar a agulha no vinil!

Em seu terceiro álbum, Thiago Grulha parece ter atingido uma constância impressionante na concepção de canções que falam a uma geração que parece estar voltando a se sentir tocada pelo uso das palavras.

Santifica-me: clamores, júbilos e Azusa no seu hi-fi

Em primeiro lugar uma péssima notícia: infelizmente o Coral não vem junto na compra do disco, porque o disco é bom, mas o Coral Resgate para a Vida ao vivo é incendiário!

Depois de ouví-los cantar uma belíssima versão de Total Praise no lançamento do álbum mais recente de Paulo César Baruk, um dos meus hobbies era esperar o prometido novo disco do grupo pela Salluz. A espera valeu. Na terça-feira de abertura da Expo Cristã assisti a um pocket show vertiginoso e saí correndo pra comprar meu exemplar. O disco está realmente surpreendente. Talvez inaugure uma nova fase no black-gospel nacional, com menos pose e mais atitude, além de adornos virtuosísticos melhor colocados. Menos aparências e mais essência. Mas não quero falar das pessoas, dos ministérios, das posturas e afins. Quero falar do disco.

A produção musical é assinada por Jeziel Assunção e William Augusto, que souberam equacionar um repertório pesadíssimo e arranjos de alta qualidade com a alta personalidade do Coral. Isto não é pouca coisa! São muitos talentos individuais enormes num só grupo, característica que poderia transformar o disco numa enfadonha vitrine de runs, trills e shouts. As instrumentações são de bom gosto notável e extremamente bem executadas e captadas, os teclados vintage são todos executados pelo produtor William Augusto que dá uma aula de música Gospel. Não o conheço, mas deve ter as gravações do The Comissioned e afins decoradinhas, dando um show de referências e criações. A direção vocal é impecável do ponto de vista dos solos, com um destaque para a participação da Deisy na versão da cavernosa Holy thou art, God de Richard Smallwood, passeando poderosamente sobre o arranjo, que embora respeite bastante a textura da gravação original traz uma clareza, um calor e uma autenticidade muito relevante para o cover. Vanessa Williams se orgulharia da cobertura de Deisy. Aliás, numa nota pessoal, os produtores eliminaram a resolução maior do final da canção, coisa que sempre me incomodou na versão do Smallwood com o Vision. Como é provável que ele não lerá este texto, ouso a crítica. Terminam a faixa no tom menor, soturno e pesado sem forçar a resolução e transitando para um Praise Break que nos transporta imediatamente para um culto genuinamente pentecostal.

Uma ausência no encarte é a indicação dos solistas, no entanto, já imaginei um ótima justificativa para isto: o Coral Resgate para a Vida parece não se importar muito com personalismo. Quando solam ao vivo, os cantores parecem conectados numa comunhão umbilical aos colegas. Eles se olham, se tocam, se suportam de maneira a proporcionar um espetáculo visual maior do que meramente vômitos de fraseologia vocal! Enquanto o mundo black-gospel parece colocar a habilidade melismática num pedestal absoluto, os integrantes deste Coral parecem ter entendido que o cantor deve sobretudo fazer com que a canção apareça e não somente usá-la como um holofote para seu virtuosismo.

Quanto ao repertório, queria destacar as composições de Bruna Pisani, integrante do Coral que surpreende com duas canções (inclusive a faixa título do disco) extremamente informadas e densas. Muita gente ouve música Gospel; e aqui não falo de Gospel como etiqueta de mercado para todo e qualquer disco que tenha texto religioso, mas como estilo musical e fenômeno vindo de uma experiência realmente vivida, mas poucos chegam a tocar a essência do Gospel e, aparentemente, esta moça é uma destas poucas pessoas.

A mixagem por Luciano Marciani é muito feliz e se ouve tudo na medida, e a masterização do sempre cuidadoso Luciano Vassão preserva a dinâmica envolvente o Coral, que vai de suaves calorosos a fortíssimos absurdos sem perder o timbre bonito.

Como maestro de profissão principal, não poderia deixar de comentar o regente do grupo: o também incendiário Gustavo Mariano. Mão de pulso firme e fraseado evidente, ele mistura uma “pegada Kirk Franklin” com uma coisa mais cantante à la Marvin Sapp, com um timbre claro, bonito e pegada de diretor de Mass-Choir.

Enfim, mesmo levando em conta minha tendência a sensacionalizar as coisas, recomendo o Santifica-me com toda a empolgação, mesmo! É viver um pouquinho de Azusa sem sair de casa.

Multiforme – Paulo César Baruk

 

Baruk Multiformemente Fotografado por Décio Figueredo e Caracterizado por Marcelo Mendonça

 

O novo lançamento de Paulo César Baruk tem o sotaque da maturidade do cantor/produtor.

Um repertório versátil, informado das novas tendências e ao mesmo tempo com todo o peso da tradição da música Gospel na bagagem. Logo na primeira faixa temos uma pequena amostra dos dotes vocais e de arranjador de Paulo César Baruk. Sozinho, soa como um Côro Gospel de estirpe inteiro. Até a metade do disco prevalece um cantor altamente técnico e inspirado com um pé na Black music sem frescura. Nada de virtuosismo vazio…

O número de músicos envolvidos no álbum ilustra uma tendência salutar do cantor em não retringir-se a guetos, mas envolver quem quer que possa contribuir com uma pegada particular para a sonoridade desejada para cada faixa. Destaco o solo de Cacau Santos no final da faixa “Glória”. Na primeira audição tive a impressão de ouvir Carlos Santana. A primeira metade do disco tem o ápice na fixa “Somente Deus” e o timbre cavernoso dos vocais (quando Kirk Franklin ouvir dirá “Amém”…) e no artesanato belíssimo de “Reina” com a espertíssima sobreposição de todos os temas na última exposição do refrão. Acompanhando a gravação do denominado Coral de Amigos pude ver o clima de absoluta getileza e bom-humor que deve ser marca das sessões do produtor além de um detalhe um pouco mais impressionante: a criatividade espontânea do produtor vocal Paulo César Baruk, fechando os olhos e acessando de memória as linhas corais, ensinando-as e gravando take após take, extraindo uma energia fantástica de seus amigos presentes. A música de trabalho “Meu Querer” (parece que podemos esperar um vídeo-clipe desta faixa em breve!) antecipa os elementos de pop-rock da segunda metade do Multiforme. Se há alguma ressalva ser feita é a ausência de uma pegada mais rapper na faixa 2 “Filho de Deus”. Toda vez que a ouço imagino um re-mix ainda mais “Black Eyed Peas” com um rimador à lá Pregador Luo entrando e rasgando a meia!

Da oitava faixa em diante o nome Multiforme faz ainda mais sentido. A regravação da composição de Thiago Grulha “Deus Está” com muitos violões e um bandolin já dão uma pitada de brasileridade bastante pronunciada para o disco. Mesmo a pegada blueseira antes do fim da música orna e orna muito com a atuação vocal dos convidados Samuel Mizrahy, Hygor Juker e Ton Carfi. Os refrões mais empolgantes e “chicletísticos” estão nesta segunda metade do disco. “Graça” e “O Nome de Jesus” são canções daquelas que se ouve uma vez e jamais se esquece. O dueto Baruk e Leonardo Gonçalves é de tirar o fôlego de quem tenha alguma idéia da dificuldade de se executar o que esses dois podem executar vocalmente. Têm-se a impressão de estar numa sala do lado do piano executado pelo próprio Baruk na faixa “Eu Corro Para Ti”. Faixa singela e por isso mesmo marcante. “Tua Presença” tenta sanar um dos defeitos de um disco com tantos convidados: a ausência de vozes femininas. Imagino que se Baruk pudesse ter um disco com todos os convidados que gostaria, teríamos o primeiro álbum quádruplo da história do Gospel Nacional, mas a cantora Daniela Araújo, num final de faixa mostra porque é atualmente a melhor profissional do Gospel Nacional. Sua precisão, bom gosto, timbre e fraseado são impressionantes, e esperar seu disco solo é uma das minhas maiores fontes de ansiedades deste ano. Poucas vozes femininas, mas ao menos a que aparece no disco é esta, logo, ponto negativo e ponto positivo ao mesmo tempo! Nesta faixa temos também uma outra presença digna de menção: Samuel Silva ao “rodhes” (infelizmente o nome do mítico instrumento da Fender apareceu escrito assim… Como trabalho constantemente com edições de partituras, sei que estes pequenos erros se escondem até que pululam na nossa frente depois do lançamento!) Samuel Silva quando quer passa por Cézar Xamargo Mariano e acho que esse elogio basta…

Gran Finale: “Flores em Vida” é um show a parte do talentozíssimo Alexandre Malaquias com um arranjo de cordas grandioso na medida certa! Lembrei de gravações antológicas da MPB na frase que Baruk dobra com os violinos no meio da faixa. O disco fecha com a “Em Nome da Justiça” e seu efeito de tirar o fôlego. Gravação gorda e magnífica mostrando que o Gospel conheceu o mangue-beat e os novos “finos da bossa” da música brasileira. Além de pregar contra algumas alienações insistentes na cena “evangeliquete” brasileira. 

Do ponto de vista técnico o álbum chega a ser impecável com relação aos timbres, arranjos e arranjadores, mixadores e a mão poderosa de Luciano Vassão na masterização. A concepção da arte do CD está muito divertida também, e as escorregadas de revisão não atrapalham tanto: o já mencionado “rodhes”, a falta do título lateral na faixa 14 (graças a Deus o crédito do compositor apareceu…), os “bem intensionados” com “s” no texto com algumas reflexões do Baruk. Texto aliás que pesa um pouco no encarte. Baruk já diz tudo o que está escrito ali com sua postura sem frescura e sem evangeliquês irritante, mas dá pra entender sua motivação: nos últimos anos, bons entendedores estão escassos…

A afirmação da bonus-track sintetiza a mensagem do disco: “O Senhor é Bom”! E Ele é mesmo: até nos brindou com o talento do Baruk! TJMM, mano Baruk!

Por que o Blues me pega pelo estômago…

Todo retorno às raízes tem seu preço!

No último período de férias que tive mergulhei pesadamente em um dos meus mais fundamentais elementos da formação do meu ouvido musical. O Blues. Neste caso o retorno me fez encarar o Cão de frente!

Uma possível gênese dos Negro-Spirituals e do Blues está na identidade que o povo negro escravizado pelos senhores de terra dos Estados Unidos sentiram com a situação dos retirantes israelenses das histórias que acabavam de re-aprender pela boca dos protestantes. Os Spirituals com seu peso sálmico e professoral e o Blues com seus tons de lamentação e celebração das catarses em meio a assolação.

Uma mitologia do blues em mixolídio nordestino no vídeo:

Cantado sem fresura, este é o cômputo de Robert Johnson. Figura mítica da música mundial que nos deixou apenas “os versos e a voz e vinte e nove canções”, sem as quais a música popular mundial não seria o que é hoje. O paralelo traçado pelo árido nordestino e o delta do Mississipi não é novidade mas encanta a toda vez que dele se fala. A falta de tudo, a filharada a tira-colo, a perspectvia pouca e a sede que se impõe à fome. Este é o cenário da passagem, da andança.

A crueza dos sentimentos é a tônica do blues carregado na antítese de uma terça ora maior, ora menor que nunca é nem bem maior nem bem menor. Aqui os tocadores me entederão! A famosa blue-note tem em si a fagulha do Blues que o ensino formal de música talvez jamais consiga expressar tão bem como uma escuta atenta e imitação diligente o possa. O bend da corda entorta a afinação de uma nota fora de catálogo, tornando macarrônica quase toda a tentativa dos tenores aos quais cabe a interpretação de um Sporting Life da ópera de Gershwing. O bel-canto prima por uma precisão grotesca ao Blues. Neste deve valer o rasgo da voz, a violência da guturalidade… Deve se arriscar perder a voz no lamento. Afinal, como se pode cantar numa terra estranha que te pega, te joga na barriga d’um peixe gigante, te atravessa para além do limite do mundo e te faz pegar algodão até que a lida te seque e mate? Só o grito, o clamor e o lamento pode valer aqui nesta encruzilhada onde se recorre ao capiroto pra se recolher os recursos que talvez darão escape ao Delta do Mississipi:

A suposta civilização dos escravagistas protestantes americanos falava de um Deus que tirou um povo do Egito, mas podia conluiar com a escravatura puritana dos brancos americanos. Os blues-men se atiravam aos cuidados da antítese do Deus cristão que lhes fora apresentado e diziam: Hellhound is on my trail! -ou ainda cantavam do mesmo Robert Johnson o outro clássico Me and the Devil’s Blues. O Blues  é o canto do desassossêgo! E me pega pelo estômago… E como pega! É visceral, verdadeiro e surge de realidades indizíveis.

Se o Blues se atira ao Demo, os Spirituals são a maravilhosa versão negra do canto ao Senhor Deus, trazendo a luta da terra, pela terra; do povo, pelo povo; para Deus e por Deus à tona, com uma musicalidade européia re-inventada na rítmica e na corporalidade do afro-descendente! Mas isso é uma outra história e ficará para outro post.